28 novembro 2015

É sábado, não está cá ninguém para ler isto

Desejar uma bicicleta, ter uma bicicleta, o meu avô a contar-me histórias aos domingos de manhã, as histórias do meu avô começarem sempre por "Numa ocasião...", uma bata branca e uma escola só de rapazes, a minha mãe levar-me à escola no primeiro dia, eu a ler livros de "Os Cinco" numa pernada de uma carvalha nas férias grandes, assistir ao assalto ao banco e fugir com o meu melhor amigo, jogar à bola na rua, a minha avó a pedir-me para lhe escrever cartas para as amigas a e metade do texto ser sempre o mesmo em todas as cartas, "muito estimo que te encontre de boa saúde que nós cá vamos indo na forma do costume", gostar de José Cid e os meus pais rirem-se disso, o meu tio a oferecer-me Eça no dia dos meus dez anos, eu detestar Eça, trabalhar nas férias enquanto os meus amigos iam para a praia de barco, David Bowie, Erasmus quando ninguém sabia o que era Erasmus, ganhar dinheiro durante um ano e gastá-lo todo num mês a viajar de comboio, uma vez, duas vezes, sete vezes, escolher as noites para viajar só para poupar o dinheiro, saber em cima da hora que teria que abrir um baile de gala e não saber dançar valsa, não vacilar porque eu era o presidente da associação, Paris, subir os Alpes em todos os países onde há Alpes, o Gerês, Bolero de Ravel, ter a certeza de que ela seria o amor da minha vida porque partilhámos o Memorial do Convento numa viagem de comboio até à Grécia, Amália Rodrigues, ir a uma entrevista para o meu primeiro emprego numa tarde e começar a trabalhar na manhã seguinte, contar que tinha sido escolhido e o meu pai perguntar-me quanto ia ganhar e eu não saber porque não perguntei, o meu primeiro ordenado ser três vezes mais do que aquilo que eu podia esperar nos meus melhores sonhos, Aznavour, ter a certeza que ela era a mulher da minha vida porque nos expulsaram da Turquia, esquiar pela primeira vez e estar sempre a cair e ser o pior da turma, ao fim do segundo dia alguém me avisar que havia folga nas fixações dos esquis e eu passar a ser o melhor da turma, o cheiro a lenha na rua de cada vez que ia no Inverno à aldeia, ter os mesmos amigos há muitos anos, Smiths e The Cure, achar que ela seria o amor da minha vida porque me ganhou um jogo de snooker depois de me bater aos pontos numa discussão e só nos tínhamos conhecido havia um par de horas, eu a achar que a impressionava por ir para dentro de um balcão de um bar no Algarve e preparar a minha própria bebida, ela a dizer-me que tinha sido patético, eu a pensar que nunca ninguém tinha dito a palavra patético referindo-se a mim, eu a conduzir um Alfa-Romeo, Bach, eu a achar que a felicidade estava numa descida de uma pista de esqui, eu a achar que a felicidade estava numa noite de gin e charutos e amigos, eu a achar que a felicidade estava em correr com um cão preto ao lado, eu a achar que a felicidade estava em conquistar mulheres demasiado bonitas, eu a achar que a felicidade estava em Puccini e Saramago e Cardoso Pires e Tarantino e Pessoa e Roth e Brel, eu a escrever um post que parece mesmo que é um bom post e a não escrever nada sobre aquilo que é realmente importante

12 comentários:

  1. Escolas gêmeas -- rapazes numa, raparigas noutra.

    (Há lá coisa mais importante que a vida?)

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  2. Bom post sobre aquilo que é realmente importante.

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  3. Cláudia Filipa28.11.15

    ...está, está... passei ali pelo post da crónica da Clara Ferreira Alves e não disse nada (gosto tanto de a ler e de a ouvir que a acho sempre em bom, mesmo nas alturas em que concordo menos, mas isso é raro). Depois fiquei estarrecida com aquele calhamaço que jaz em seu colo na fotografia, e olhei para o meu livro (A explicação dos pássaros, António Lobo Antunes) e pensei, vá Cláudia, mas afinal és uma mulher ou um rato (sabe que o feminino de rato fica muito mal) isto não pode ser assim tão difícil, olha para aquela coisa monstruosa sobre matemática ali do Pipoco, vá lá, acaba lá isso sua mariquinhas. Com este estímulo já ultrapassei a página duzentos, estou à beira de poder dizer (e ser verdade) que consegui ler um livro de António Lobo Antunes. Estou a partilhar isto consigo porque me mostrou a sua camisa, as calças, os sapatos, o livro que esteve a ler e fez-me um resumo de uma parte da sua vida, ora também não me custa nada partilhar alguma coisa.
    "Sobre aquilo que é realmente importante", é natural que não escreva nada, já dizia Fernando Pessoa num dos seus poemas que "quem sente muito cala", "Quem quer dizer o que sente, Não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente, Cala: parece esquecer."
    A felicidade, dizem que são momentos, não é?, e enquanto estava "a achar" era bem capaz de estar a ser feliz ao mesmo tempo. Seja como for, tem aí uma bela coleção de momentos.

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  4. Fartei-me de rir com o final do post
    Susana

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  5. As coisas importantes da vida são as que nos inspiram para escrever posts. Posts bons de ler como este.
    (a sério que gosta de Tarantino?)

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  6. Anónimo28.11.15

    Ainda é Sábado e alguém ainda foi a tempo de ler e de comentar isto das coisas importantes. Por vezes, em posts como este, fico com a sensação de que o tio viveu muitos anos, atravessou uma série de décadas, muitas mais do que aquelas que lhe auferem os aniversários. E aqui, onde espelha os momentos vividos talvez por todo o patriarcado, ou mesmo só por parecerem capazes de terem atravessado uma respeitável longevidade, ficamos a saber o que é realmente importante. Ser intemporal. Boa noite, tio. Durma bem.

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  7. Lady Kina29.11.15

    E que tal um post-espécie-reverso-deste em que relatasse, não mais nem menos importantes, episódios cuja memória que deles guarda não recrudesce assim tão mansa no lago do seu orgulho?

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  8. Gostei, até por termos algumas convergências.

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  9. Um post sobre o que importa, portanto.

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  10. A post de sábado do Pipoco Mais Salgado...
    ...é um post em bom.

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  11. Busto do Napoleao30.11.15

    O meu amigo insiste em ir para dentro do balcão preparar a sua própria bebida apesar de já ter sabedoria suficiente para reconhecer que o prazer genuíno está em apreciar as que são preparadas pelos outros

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  12. Anónimo5.12.15

    Feitas as contas, quantos amores da sua vida é que teve?

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